Uma breve história da Evolução – As raízes filosóficas

A ideia de que as espécies não são imutáveis não começou com Darwin. Na verdade, muitos cientistas já sabiam e defendiam que as espécies mudam ao longo do tempo, e isso bem antes da publicação da Origem das Espécies.

Há quem diga que as raízes do pensamento evolutivo podem ser traçadas até a antiguidade. A ideia central do pensamento evolutivo moderno é a concepção de que as espécies atuais se desenvolveram a partir de outras pré-existentes, com modificações herdadas e selecionadas através da seleção natural, da deriva genética e do fluxo gênico. Esta ideia é contrária ao fixismo, que defende que espécies são imutáveis e sempre foram do jeito que são. Neste post, faço um apanhado geral (não exatamente cronológico) de algumas linhas de pensamento ao longo da história que já discutiram a ideia de que as espécies podem mudar ou não. Porém, ressalto que nem todas representam de fato a ideia evolucionista, pelo menos não na ótica Darwiniana, sendo baseadas majoritariamente em aspectos filosóficos e não biológicos. Elas não são exatamente precursoras do evolucionismo, mas representam palpites “quase certos” ou conceitos que fundamentaram portos importantes na ciência ao longo da história.

Começando pela China, é possível notar linhas de pensamento do taoísmo que negavam explicitamente a ideia de que as espécies eram fixas. Na obra de Chuang Tzu (370301 a.C.), já havia especulações de que certos atributos existentes nas espécies teriam se desenvolvido em resposta à ambientes diferentes. A “constante transformação” é um conceito chave para a filosofia taoísta, que se aplica para a natureza, para os animais e para nós, seres humanos.

Pensamentos proto-evolutivos?

Na Grécia antiga, Anaximandro de Mileto (610546 a.C.) já afirmava que espécies poderia dar origem umas às outras, e que a vida provavelmente havia se originado em ambiente aquático e “progrediu” através de transformações que criaram novas formas mais adaptadas ao ambiente terrestre. Porém, não há evidências de uma ideia semelhante com a seleção natural no pensamento de Anaximandro.

Onde quer que todas as partes apareçam tal como seriam se tivessem sido feitas para um determinado fim, tais coisas sobreviveram, sendo organizadas espontaneamente num modo adequado; enquanto outros que cresceram de outra maneira pereceram e continuam a perecer…

Síntese de Anaximandro segundo Aristóteles.

Para Empédocles de Agrigento (490430 a.C.) tudo que existe é composto basicamente pelos elementos terra, ar, fogo e água; que se unem de forma natural pela ação das forças antagônicas do amor (que aproxima) e do ódio (que afasta). Para ele as partes dos seres vivos (braços, pernas, olhos, etc.) existiam de forma desordenada e se agrupavam de forma aleatória pela ação dessas forças, gerando seres mais complexos com diferentes combinações de atributos. Assim, as criaturas que tivessem combinações inadequadas, com falta ou excesso de partes, morreriam e somente as criaturas com combinações harmoniosas estariam aptas a sobreviver.

Materialismo

Busto de Epicuro esculpido em Mármore

Ainda na Grécia é onde surge a corrente filosófica materialista, que sustenta a ideia da matéria como constituinte fundamental de todas as coisas, e todos os fenômenos são resultados da dinâmica de interação da própria matéria. O materialismo é basicamente contrário às ideias da metafísica e nega explicações fora do mundo físico. Dentre os mais famosos materialistas temos Demócrito, que sistematizou o pensamento atomista (de que todas as coisas são compostas por partículas fundamentais, indivisíveis – os átomos). Ele influenciou o pensamento de Epicuro (341270 a.C), que sustentava o argumento de que as formas existentes na natureza são resultado do acaso, todos os seres vivos e até mesmo nós somos produtos da mera aleatoriedade. Epicuro fazia oposição à linha teleológica de Aristóteles (a idea de todas as coisas possuem finalidade ou propósitos), para ele o aparente propósito das estruturas de um organismo era resultado de um processo de seleção feito pela natureza. Nesse sentido, a filosofia Epicurista nos dá primeiros passos à ideia de seleção natural e pode representar um Proto-Darwinismo.

O Epicurismo perdurou durante os séculos e influenciou, o poeta e filósofo romano Tito Lucrécio Caro (9955 a.C.), que acreditava que os organismos que se adaptam melhor ao seu ambiente têm as melhores chances de sobrevivência, usando principalmente de sua força, velocidade ou intelecto. Ele fala do desenvolvimento do cosmos, da Terra, dos seres vivos e das sociedades humanas de forma puramente materialista sem apelar para o sobrenaturalismo. Ele não acreditava que novas espécies surgiriam de outras pré-existentes ou que os animais terrestres derivassem de ancestrais aquáticos. No entanto, Lucrécio também desafiava a ideia de imutabilidade das espécies e de que seres humanos seria superiores aos outros animais.

Essencialismo

Outra corrente de pensamento da Grécia que rivalizava com o materialismo foi o essencialismo, ou, a teoria das ideias desenvolvida por Platão (428348 a.C.). Para ele as formas animais aparecem como resultado da degradação progressiva a partir do Homem. O mais importe é sua ideia dos “dois mundos“; o mundo das ideias, que seria perfeito e imutável e que abriga conceitos, ideias ou essências (eide) de todas as coisas; o outro que seria o sensível, o que experimentamos através dos nossos sentidos, que podemos ver e tocar mas onde tudo que existe é um mero reflexo ou imitação das essências. para esclarecer melhor, é como se um animal como uma zebra fosse apenas um reflexo da essência de uma zebra (um mamífero herbívoro, equino com listras pretas e brancas), cada zebra que existe no mundo é uma cópia imperfeita dessa ideia, umas um pouco mais parecidas e outras nem tanto.

Filhote de zebra com rara condição que troca listras por pintas. Na visão evolutiva (que é materialista) a variação nas zebras é aleatória, as pintas provavelmente são resultado de mutações. No essencialismo as pintas existem porque todas as zebras são cópias imperfeitas de suas essências.

Essa imperfeição é o que essencialistas usam para explicar porque cada zebra é diferente e apresenta um padrão de listras diferentes, e também porque os seres vivos são tão diversos. Existem várias formas de animais e cada forma tem variações (diferenças de tamanho, de cor, entre sexo e nas características morfológicas por exemplo) porque todos são cópias imperfeitas de suas essências. Os animais podem até mudar mas suas essências são imutáveis.

O essencialismo basicamente reforça a crença na imutabilidade das formas viventes e foi com Aristóteles (384–322 a.C.), aluno de Platão, passou a predominar no pensamento científico ocidental. Como mencionado anteriormente em um post sobre a história da Taxonomia, Aristóteles foi pioneiro na classificação dos seres vivos ao estabelecer níveis de hierarquia na natureza. Ele usou os conceitos de genos (grego — origem, descendência, gênero), é um nível mais geral e abrangente que inclui vários elementos; e eidos (grego — aspecto exterior, forma, modo de ser, espécie), um nível mais restrito, um dos elementos que é incluído em um nível maior.

A Escola de Atenas, de Rafael Sanzio

Assim surgiu a ideia de categorias taxonômicas (reino, filo, classe, ordem, família, gênero e espécie), que são genos ou eidos umas das outras, e da classificação dos seres vivos de forma hierárquica. Essa é uma ideia excelente para organizar os seres vivos como no sistema criado por Lineu, mas que indiretamente impõe ideias fixistas na classificação biológica.

A visão hierarquizada da natureza de Aristóteles era reflexo do princípio da plenitude, a ideia de que todas as potenciais formas de vida são parte de uma criação perfeita. Além disso, como dito antes, a linha teleológica de raciocínio trazia a ideia de que desenvolvimento dos seres vivos era voltado para uma finalidade ou função, e tenderia à preservação de suas formas. Aristotéles se tornou uma importante fontes de filosofia clássica para o pensamento cristão da Europa medieval e, consequentemente, para grande parte do pensamento científico ocidental. Essa ideia juntamente com o essencialismo de Platão (na ideia de imutabilidade) fundamentou o pensamento de que o universo é um sistema matematicamente perfeito, com alguma inteligência envolvida por trás de tudo que se difundiu ao longo dos séculos. Felizmente, a ciência superou e se libertou destes grilhões.

Aqui encerramos esta primeira parte do post. Em breve, lançaremos a segunda parte com referências pré-Darwinianas do período Medieval, renascentista parte do período Iluminista.

Referências:

Texto Daoism and Nature Arquivado em PDF.

Matéria do Blog Dave’s Garden – From Aristotle to Linnaeus: the History of Taxonomy

Artigo da JSTOR sobre Anaximandro – Was Anaximander an evolutionist?

Páginas da Enciclopédia de Filosofia da Internet (Internet encyclopedia of philosophy) – Anaximander, Empedocles, Democritus, Epicurus, Lucretius, PlatoeAristotle

Livro de Rebecca Stott – Darwin’s Ghosts: In Search of the First Evolutionists.

Livro de Curtis N. Johnson – Darwins Historical Sketch: An Examination of the ‘Preface’ to the Origin of Species

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