Paradigma de Estocolmo: Uma questão de tempo até a próxima pandemia

Zoonoses são doenças infecciosas com capacidade de serem naturalmente transmitidas entre humanos e outros animais. Os agentes que infecciosos e parasitários podem ser vírus, bactérias, fungos, protozoários e os helmintos. Essas doenças estão em ascensão, à medida que a humanidade continua avançando em sua destruição sem precedentes dos habitats naturais. Os cientistas sugerem que habitats degradados podem incentivar processos evolutivos mais rápidos e diversificação de doenças, à medida que os patógenos se espalham facilmente para a pecuária e os seres humanos.

Coronavírus que saltaram para humanos

É nesse contexto que surgem as doenças emergentes, como a pandemia de Covid-19, causada pelo SARS-CoV-2 com o primeiro caso diagnosticado em Wuhan, China. Os coronavírus em geral são de origem zoonótica, sendo transmitidos para humanos por algum animal, quase sempre um morcego, podendo utilizar outros animais como intermediários. Investigações sobre a origem o primeiro SARS-CoV (que causou o surto de SARS em 2002) apontaram sua passagem de civetas para humanos, enquanto que o MERS-CoV (que causou a MERS em 2012) passou de camelos e dromedários para humanos. Assim, embora a origem do SARS-CoV-2 ainda seja inconclusiva, é muito provável que o vírus tenha passado para humanos ou diretamente de morcegos ou por algum animal intermediário como o pangolim.

Desde então pesquisadores de todo o mundo começaram a estudar diferentes métodos de tratamento, mecanismos de dispersão e transmissão do vírus, uma nova vacina, etc. Mas essa pandemia por si só, não nada mais que uma mera peça em um quebra cabeça muito maior e complexo. As mudanças climáticas ainda continuam assim como o desmatamento, a poluição e o uso indevido de medicamentos escodem novas ameaças que podem ser muito piores.

A maioria das doenças que afetam humanos são zoonóticas

As zoonoses em geral são uma das nossas principais preocupações em relação à saúde. Somente elas representam cerca de 60% de todas as doenças infecciosas existentes em humanos e também representam 75% de todas as doenças infecciosas emergentes. Isso significa que a maior parte das doenças que possam acometer você, caro leitor, provavelmente virão de algum animal direta ou indiretamente. Exemplos? Dengue, zika, chicungunha, gripe, ebola, SARS, MERS, Covid, malária, chagas, toxoplasmose, leishmaniose, leptospirose, brucelose, peste bulbônica, antraz, esquistossomose, teníase, cisticercose, entre muitíssimos outros. A lista fica ainda maior ao considerarmos que e até mesmo doenças cuja transmissão primariamente não inclui animais, podem ter algum potencial zoonótico. Essas doenças somadas também representam mais de 2,5 bilhões de pessoas doentes e 2,7 milhões de mortes por ano, o que gera cerca de 1 trilhão de dólares de gastos anuais com saúde pública. Em resumo, zoonoses devem ser nossa grande preocupação!

‎Em julho de 2019, o livro ‎‎The Stockholm Paradigm: Climate Change and Emerging Disease‎‎ (ou O Paradigma de Estocolmo: Mudanças climáticas e Doenças emergentes, em tradução livre) foi publicado pelos pesquisadores Daniel R. Brooks, Eric Hoberg e Walter Boeger. O livro oferece uma nova compreensão das relações entre patógenos e hospedeiros que explica o atual cenário de tantas doenças emergentes como uma “consequência subestimada” da crise climática.‎ Catástrofes com a pandemia de Covid-19 estão se tornando cada vez mais comuns na história da humanidade.

Tabela 1. As principais pandemias da história
DoençaPeríodoMortes estimadas
VaríolaDe 3000 a.c.–1979> 300 milhões
Peste bubônica1347–1351~ 225 milhões
Gripe espanhola1918–191950 milhões
AIDS1981–hoje23,6–43,8 milhões
Covid-192019-h0je3,7 milhões
Cólera1899–19231,5 milhão
Gripe asiática (H2N2)1957–19581,1 milhão
Gripe russa (H2N2)1889–18901 milhão
Gripe de Hong-Kong1968–19701 milhão
Gripe suína (H1N1)2009–2010151–575 mil
Ebola2014–201611, 3 mil
MERS2012–presente866
SARS2002–2003774

‎O que as mudanças climáticas têm a ver com doenças emergentes?

Capa do livro

É muito bem estabelecido que as mudanças climáticas que aconteceram ao longo da história da Terra moldaram a distribuição das espécies até a forma como elas estão hoje. De acordo com a ciência, episódios de mudanças climáticas e perturbação ambiental têm sido em grande parte associados a migrações, espalhando organismos além de sua gama nativa. A biogeografia descreve justamente os diferentes eventos de dispersão e especiação que levaram os organismos vivos à suas distribuições atuais, suas relações ecológicas e evolutivas. Desta forma, é possível associar também essas mudanças com as doenças emergentes, visto que os hospedeiros carregam junto sua comunidade de parasitos, introduzindo novos patógenos em diferentes ambientes e abrindo o leque de hospedeiros disponíveis aos parasitos.

A dinâmica dos seres vivos obedece um ciclo, e podemos destacar três fatores importantes: 1º – diversificação, onde surgem novas espécies e muitas se especializam em determinados tipos de habitat, 2º – migração, onde mudanças ecológicas (mudanças ambientais, competição, etc.) mudarão as pressões ambientais e as espécies mais possivelmente se mudarão para locais mais favoráveis e 3º – extinção, onde as espécies que não conseguirem migrar ou competir com invasores de seus hábitats irão inevitavelmente desaparecer. Tomando o exemplo da última Era Glacial no final do Pleistoceno, grande parte do ecossistema de pastagens secas do Alasca para um pantanal cheio de arbustos, atraindo alces, humanos e outras espécies mais ao norte, uma nova gama de patógenos foi introduzida. Enquanto isso, aqui na América do Sul, a última glaciação foi um dos fatores que, junto da dinâmica dos rios, dos oceanos e da umidade, possibilitou o surgimento da diagonal de formações abertas, um corredor de savanas que vai do Chaco, ao noroeste da Argentina, passa pelo Cerrado e vai até a Caatinga no nordeste do Brasil. A diagonal isolou a Mata Atlântica da Floresta Amazônica, que antes estavam unidas, e possibilitou a formação da rica diversidade de espécies em cada um destes biomas, incluindo seus parasitos.

Em resumo, mudanças climáticas fazem as espécies de moverem por aí e consequentemente eventos de extinção e especiação irão ocorrer. Nesse sentido, o aquecimento global causado pelo homem não é fundamentalmente diferente, estamos causando as exatas mudanças que ocorrem na natureza ao longo dos milhares de anos, mas em um período extremamente curto. As florestas estão diminuindo, o permafrost derretendo, os rios secando em muitos lugares e batendo recorde de cheias em outros, as correntes oceânicas estão mudando e as espécies se movendo à uma taxa sem precedentes! O aumento da globalização e da urbanização têm amplificado esses efeitos, as cidades estão mais cheias, estamos cada vez mais próximos, os hospitais mais lotados, o lixo acumula mais. Além disso, temos muitos animais transmissores de doenças nas cidades (ratos, pombos e até mesmo animais domésticos), e nas fazendas (aves, suínos, bovinos e outros) e agropecuária avança por cima das florestas para conseguir produzir sustentar nosso padrão de vida e entramos em contato com mais e mais espécies silvestres. Junte isso tudo e temos uma bomba-relógio, é uma questão de tempo até a próxima grande pandemia.

O Paradigma de Estocolmo

O livro na verdade quebra um dos paradigmas mais tradicionais na parasitologia. O que se pensava antes e ainda é muito ensinado sobre relações patógenos-hospedeiros é que se tratava de uma relação altamente especializada – tão especializada, na verdade, que os patógenos não poderiam sair de seus hospedeiros originais e sobreviver em outros hospedeiros sem uma mutação que favorecesse esse salto. Considerando que patógenos em geral têm uma complexidade e só se desenvolvem em condições específicas, é natural pensar que eles são muito especializados. Os vírus só se replicam dentro das células e precisam de um aparato celular compatível para montar sua estrutura. Vermes e protozoários podem passam por diferentes estágios que só crescem em órgãos com condições ótimas para tal.

Na visão tradicional, em uma especialização tão alta é de se esperar que cada patógeno ocorresse em apenas uma espécie sua evolução pudesse espelhar a do hospedeiro, mostrando uma coevolução onde as árvores evolutivas de parasito e hospedeiro fossem exatamente iguais. Porém o que se observa na maioria dos estudos é que há muitos parasitos multi-hospedeiro e as árvores evolutivas mostram um padrão de “rede” onde há saltos para outros hospedeiros não aparentados e a evolução nem sempre é espelhada. Assim, a visão proposta pelos autores do livro mostra que a troca de hospedeiros ocorre não somente por mutações mas principalmente pela oportunidade de contato.

Isso mostra que a troca de hospedeiros é mais comum do que pensávamos tira a necessidade obrigatória de haver mutação para que o parasito colonize um novo hospedeiro quase que em um passo de mágica (embora não elimine totalmente as mutações da questão). Na verdade, muitos parasitos já são capazes de se desenvolver em outros hospedeiros e assim o farão se tiverem a chance. ‎Considere os exemplos da imagem abaixo:

Um determinado patógeno ocorre em duas espécies de hospedeiros diferentes (X e Y), porém está muito bem adaptado à espécie Y enquanto que em X ele está menos adaptado e se reproduz com menos frequência. No cenário A, em condições normais, o patógeno vai ser muito mais abundante na espécie Y e pode ocasionalmente ocorrer em X. Porém, se a espécie X é extinta, o patógeno continuará ocorrendo em Y, aumentará sua frequência e eventualmente pode se tornar mais adaptado a ela. No cenário B, consideramos um hospedeiro Z ainda mais suscetível ao patógeno, porém uma barreira impede que seja colonizado pelo patógeno. No entanto, se X ou Y migrarem para o novo local carregando o patógeno, Z se torna um novo hospedeiro muito mais interessante.

Trazendo o exemplo da Covid-19, segundo a visão tradicional o vírus que ocorria em algum animal silvestre só passou a ocorrer em humanos após uma mutação que permitisse o vírus ser compatível com nossos receptores. Porém, segundo o paradigma de Estocolmo, o vírus que já possuía alguma capacidade de infectar humanos, mesmo que reduzida, se tornou cada vez mais adaptado ao ponto da transmissão humano-humano ser possível. É exatamente o que podemos observar com as cepas de H1N1 que são constantemente monitoradas em suínos para antecipar uma pandemia de Influenza.

Muitas iniciativas de antecipar as pandemias existem e os estudos nunca param, projetos baseados na visão do livro já tomaram forma em muitos lugares, o Protocolo DAMA é a extensão da política do Paradigma de Estocolmo criado para ajudar governos e instituições de saúde a fornecer uma dimensão preventiva aos modos tradicionais de resposta a crises para lidar com doenças infecciosas. Porém ainda é necessário mudar a visão de muitos cientistas e da sociedade para uma visão biológica mais acurada dos patógenos e da necessidade de combater as mudanças climáticas. Enquanto a politicagem e o negacionismo da crise climática atrasam o avanço dessas pautas, o contador da bomba-relógio na para e a próxima pandemia se aproxima cada vez mais. Estaremos preparados para ela?

Fontes

Livro – The Stockholm Paradigm “O paradigma de Estocolmo”

Habitat loss linked to global emergence of infectious diseases – ScienceDaily

Leituras complementares

SARS-CoV-2, como fazer para essa Pandemia não acontecer novamente? – Blog Cientistas Feministas

How Do Climate Change, Migration and a Deadly Disease in Sheep Alter Our Understanding of Pandemics? – Ensia

Coronavirus outbreak highlights need to address threats to ecosystems and wildlife – United Nations Environment Programme (UNEP)

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