Deuses e múmias: os crocodilos que vivem no deserto do Saara

Crocodilos são animais que geralmente associamos à ambientes aquáticos como pântanos ou rios e pode parecer inconcebível que eles possam ocorrer em ambientes secos como os desertos, não é mesmo? Mas, por mais incrível que pareça, sim, eles chegaram lá!

Como diria o Dr. Ian Malcolm em Jurassic Park, “a vida encontra sempre uma maneira” e algumas populações de Crocodylus suchus, o chamado de crocodilo-do-oeste-africa ou crocodilo-do-deserto, encontraram uma maneira de sobreviver em pleno deserto do Saara, distribuídos principalmente pela borda sul do deserto. Essa espécie foi catalogada pelo naturalista e zoólogo francês Étienne Geoffroy Saint-Hilaire em 1807 a partir de diferenças que ele encontrou entre os crânios de um crocodilo mumificado e os de Crocodylus niloticus, o crocodilo-do-Nilo. Porém, por muito tempo C. suchus e C. niloticus foram considerados a mesma espécie, ou, uma subespécie do crocodilo-do-nilo denominada Crocodylus niloticus suchus. Foi somente em 2011 que pesquisadores da ‎Universidade Fordham, em Nova York, reuniram evidências da validade da segunda espécie em um estudo que sequenciou os genes de 123 espécimes de crocodilos-do-Nilo e 57 espécimes preservados em museus, incluindo múmias de crocodilos de até 2.000 anos atrás.

O Crocodilo-do-Nilo tem distribuição mais ampla, ocorrendo em todo o território entre delta do Rio Nilo e a África do Sul, incluindo a ilha de Madagascar. O crocodilo-do-deserto tem distribuição mais restrita, ocorrendo na faixa de território entre a Mauritânia, no oeste do continente, e o Sudão do Sul, na África Central.

Crocodilos-do-Nilo atingem um comprimento aproximado de 5 metros enquanto os crocodilos-do- deserto dificilmente passam de 1,5 metros de comprimento. Apesar disso, ambos foram considerados como uma só espécie por tanto tempo pelo fato de que C. niloticus tem uma distribuição muito ampla, ocorrendo em conjunto com C. suchus em muitas partes da África central. Ambas as espécies também são muito semelhantes, o que dificulta seu reconhecimento usando a morfologia. Além disso, o tamanho reduzido é típico dos crocodilos de áreas pobres em recursos — onde não há muito alimento disponível durante boa parte do ano, e os animais crescem mais lentamente. Então era razoável considerar C. suchus como uma variedade ou uma subespécie menor de C. niloticus.

Outro ponto, muitas populações de crocodilos – incluindo os do próprio rio Nilo – são isoladas e umas das outras, mas não são suficientemente diferentes para contar como espécies ou subespécies diferentes. A população de Madagascar, por exemplo, ainda é geneticamente semelhante aos crocodilos da África continental. Porém, as diferenças genéticas são inegavelmente altas entre C. suchus e C. niloticus, e apesar da proximidade geográfica de ambas as espécies, o crocodilo-do-nilo é evolutivamente mais próximo das espécies de crocodilos das américas do que do próprio crocodilo-do-deserto. Curioso, não?

Mesmo assim, tirando a diferença de tamanho e outras poucas diferenças sugeridas por alguns pesquisadores, esses animais são extremamente parecidos, divergindo muito apenas em nível genético, sendo então considerados espécies crípticas.

Árvore filogenética mostrando os graus de parentesco das espécies do gênero Crocodylus. A imagem demonstra claramente a maior proximidade filogenética de C. niloticus com as espécies do continente americano (como C. acutus) do que com C. suchus. Adaptado de Meredith e colaboradores (2011).

Como que os crocodilos foram parar no meio do Saara?

Especula-se que no período entre 10 a 8 mil anos atrás, o que agora é deserto era provavelmente uma savana exuberante com pastagens e mais vegetação, mas as mudanças climáticas e ambientais que ocorreram no norte da África ao longo dos milhares de anos tornaram o Saara quente e árido, repleto de areia, com pouquíssima chuva e a vegetação esparsa. À medida que esses lugares secaram, populações remanescentes ficaram isoladas e tiveram que se adaptar às mudanças.

Os crocodilos do deserto habitam dois tipos de hábitats: áreas úmidas formadas pela água da chuva acumulada em depressões com argila seca e um tipo de hábitat pantanoso conhecido como guelta, formada quando a água da chuva ou de nascentes subterrâneas forma piscinas em depressões rochosas. Como há grande variação na quantidade de chuva entre os locais e ao longo do ano, os abastecimento de água é temporário e essas áreas secam por muitos meses durante a estação seca. Nesse período, os crocodilos se abrigam em cavernas e rochas e entram em torpor, um tipo de hibernação na qual ficam sem comer e reduzem muito seu metabolismo.

Esses registros são notáveis, visto que crocodilos raramente se aventuram longe da água. Porém, na Mauritânia, eles vivem escondidos em cavernas, tocas e sob rochas, perto de corpos d’água perenes que surgem com as chuvas, depois secam e desaparecem. O fato de que esses animais podem sobreviver nessas condições é prova de sua incrível capacidade de se adaptar a condições relativamente hostis.

Crocodilos, múmias e deuses!

Busto de Sobek, a antiga divindade crocodiliana egípcia

Quem trouxe a população de crocodilos do deserto ao nosso conhecimento foi Tara Shine, uma estudante de doutorado na Universidade de Ulster, na Irlanda do Norte, que soube sobre eles enquanto trabalhava nas áreas úmidas perenes da Mauritânia. Ela estava realizando uma pesquisa em 244 destas áreas na parte oriental do país e soube por parte dos locais da existência de crocodilos em muitas delas, o que parecia difícil de acreditar. Intrigada com os relatos, Shine investigou e encontrou populações de crocodilos primeiramente em oito locais. As populações de crocodilos são pequenas e isoladas umas das outras, bem como de outras populações de crocodilos no continente. Shine encontrou uma série de populações em vários locais. Alguns pontos tinham até três dúzias de crocodilos, outros tinham apenas um animal solitário.

Mas os verdadeiros descobridores da espécie vieram muito antes de Tara Shine e até de Geoffroy Saint-Hilaire. Sobek era uma das divindades do panteão dos antigos Egípcios (é de Sobek que deriva o nome Suchus), sendo representado principalmente como um crocodilo ou como um homem com cabeça de crocodilo. De acordo com os relatos de Heródoto, um tipo de crocodilo era considerado sagrado, cuidado nos templos, adornado peças de ouro e alimentados com bolos e vinho misturados com mel, mumificados e adorados em templos. Fayum, um dos principais centros de culto a Sobek, conhecida como Crocodilopolis pelos gregos, é um dos locais onde muitas múmias de crocodilos foram achadas.

Lagoa com crocodilos em Bazoule, Burkina Faso. Os moradores locais consideram os crocodilos sagrados.

Análises genômicas mostram que quase todas as múmias eram de C. suchus, um indicativo de que essa espécie tinha um papel cultural no culto ao deus Sobek. Além disso, aparentemente C. suchus são tipicamente menores e menos agressivos aos humanos que C. niloticus. De forma semelhante, relatos de crocodilos “domesticados” ou cultuados em crenças tradicionais da África Ocidental sempre apontam para essa espécie, considerada um guardião que protege aqueles que os reverenciam. Então, de alguma forma os egípcios provavelmente já sabiam identificar as espécies muito antes da ciência moderna, que só passou a reconhecê-los como espécies diferentes em meados de 2011.

Conteúdo recomendado – Vídeo do Canal do Pirula

Fontes:

Crocodylus suchus – The Reptile Database

Nile crocodile is two species – Nature

A phylogenetic hypothesis for Crocodylus (Crocodylia) based on mitochondrial DNA: Evidence for a trans-Atlantic voyage from Africa to the New World – ScienceDirect

A geometric morphometric analysis of Crocodylus Niloticus: evidence for a cryptic species complex – University of Iowa Libraries

Desert-Adapted Crocs Found in Africa – National Geographic (Via Archive.org)

Crocodiles in the Sahara Desert: An Update of Distribution, Habitats and Population Status for Conservation Planning in Mauritania – PlosONE

Sobek – Antigo Egito

The secrets of Sobek – A crocodile mummy mitogenome from ancient Egypt – ScienceDirect

Molecular evidence for species level divergence in African Nile Crocodiles Crocodylus niloticus (Laurenti, 1786) – ScienceDirect

An ancient icon reveals new mysteries: mummy DNA resurrects a cryptic species within the Nile crocodile – Molecular Ecology – Wiley Online Library

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