Henrietta Lacks – O Legado da Mulher Imortal

“Em 1951, uma mulher negra e humilde morre de câncer; e suas células – retiradas sem seu consentimento – são mantidas vivas, dando origem a uma revolução na medicina e criando uma indústria multimilionária. Apesar disso, somente 20 anos depois que seus filhos descobrem a história e têm suas vidas completamente modificadas”.

De uma plantação de Tabaco para o Mundo

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Capa brasileira do Best-Seller de Rebecca Skloot

Henrietta Lacks era filha de Eliza e Johnny Pleasant, tendo nascido no dia 1 de agosto de 1920, em Roanoke, interior da Virgínia e sendo batizada como Loretta Pleasant. Pouco se sabe sobre como seu nome mudou de Loretta para Henrietta, mas sabe-se que era apelidada de Hennie. Aos quatro anos de idade a pequena Hennie ficou órfã de sua mãe, que morreu após o parto de seu décimo filho. O pai, incapaz de sustentar os filhos sozinho após a morte da esposa, resolveu se mudar com a família para Clover, em Virgínia, onde as crianças foram distribuídas entre parentes. A garota ficou sob os cuidados de seu avô Tommy Lacks, em uma cabana de madeira de dois andares que antes tinha sido abrigo dos escravos de sua Fazenda de Tabaco. Ela compartilhou um quarto com seu primo de nove anos e futuro marido, David “Day” Lacks.

A jovem Hennie teve uma vida difícil, sofrendo bem cedo com o preconceito, ao frequentar uma escola segregada para negros americanos e abandonando-a para trabalhar na plantação de tabaco por ordem do avô. Tornou-se mãe e um menino logo após seu aniversário de 14 anos, tendo alguns anos depois uma filha, que sofreu de epilepsia, e problemas de desenvolvimento. Em 1942, Henrietta e seu marido  mudaram-se para os subúrbios de Maryland em Baltimore, onde enfrentaram as dificuldades dos tempos de guerra. Hennie e seu marido ainda tiveram mais três filhos em seu novo lar. Entretanto, pouco antes de sua última gravidez, Henrietta começou sentir dores vaginais e apresentar hemorragias que se intensificaram depois do nascimento de seu último filho. Alguns meses depois, após sentir um “nó” em seu útero, a mulher foi buscar atendimento médico no Hospital Johns Hopkins, o único de Baltimore, que atendia afro-americanos naquela época. Então, em 1951, aos trinta anos, casada e mãe de cinco filhos, Henrietta foi diagnosticada com Câncer no Colo do Útero.

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Henrietta Lacks em 1940

Apesar de ter iniciado o tratamento, seu câncer produzia metástases anormalmente rápidas que em pouco tempo se espalharam pelo seu corpo. A mulher perdeu rapidamente o vigor, sendo até referida como um “espécime miserável”, nas palavras impiedosas do prontuário médico do Hospital, vindo a falecer em 1951. Porém este ainda não é o fim da história da senhora Lacks.

Antes do início do tratamento, uma amostra do colo do útero de Henrietta havia sido extraída sem o seu conhecimento, e fornecida à equipe do Dr. George Gey Otto, chefe de pesquisa de cultura de tecidos no Hospital. O Doutor tinha a ambição era livrar o mundo do câncer. Ele acreditava que as respostas para uma possível cura para a doença estariam nas próprias células humanas. Mas havia um grande problema! Por 30 anos ele vinha tentando cultivar células cancerosas em laboratório, porém sem sucesso. Até que ao analisar as amostras provenientes de Henrietta, o pesquisador constatou que as células cancerígenas desse tecido possuíam uma característica até então inédita – mesmo fora do corpo de Henrietta, multiplicavam-se e meio de cultura num curto intervalo de tempo. Assim, estas células podia ser cultivadas indefinidamente em laboratório, ou seja, eram virtualmente imortais!

Com a descoberta, as células foram batizadas como HeLa, as letra iniciais do nome e do sobrenome da doadora involuntária. Logo a linhagem de células começou a ser utilizada nas mais variadas pesquisas em universidades e centros de tecnologia, nos Estados Unidos e no exterior.

“Em poucas horas, HeLa é multiplicada prolificamente”, diz John Burn, professor de Genética na Universidade de Newcastle, Reino Unido.

De fato, as células de Henrietta reproduzem uma geração inteira em 24 horas, o que nunca deixou de ocorrer até hoje!

Novas perspectivas para a Ciência

Desde então, foram abertas portas para uma infinidade de pesquisas utilizando as células HeLa como modelo. Um dos mais notáveis feitos científicos a partir desta linhagem de células foi realizado por Jonas Falk no desenvolvimento de uma vacina contra a poliomielite – responsável por salvar milhares de vidas e praticamente erradicar a doença. Também foi a partir destas células que os cientistas identificaram o número de cromossomos humanos como sendo 46. As células HeLa também podem ser expostas à radiação, infecções e drogas em doses que normalmente não seriam viáveis em humanos,  o que permitiu a descoberta de novos tratamentos contra o câncer, DSTs como AIDS e HAP, e doenças neurodegenerativas como o Mal de Parkinson.

As células de Henrietta foram as primeiras humanas a serem clonadas e também as primeiras a serem compradas, vendidas, embaladas e enviadas para milhões de laboratórios em todo o mundo. A partir disso as células HeLa foram utilizadas desde experimentos com cosméticos, até missões no espaço para analisar os efeitos das viagens espaciais nas células humanas e em experimentos nucleares.

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“Células HeLa com destaque para diferentes componentes celulares, em amarelo o Núcleo, em azul os Filamentos de actina e em rosa as mitocôndrias – Foto: Smithsonian Magazine

Desta forma, a partir de 2001 mais de 10.000 patentes já foram registradas e cinco prêmios Nobel foram concedidos para pesquisas com células HeLa. A grande demanda destas células criou uma indústria bilionária de medicamentos sintéticos e um mercado global baseado na comercialização das células de Henrietta Lacks para a pesquisa genética. o Instituto Tuskegee, por exemplo produz as células em massa, enviando 20 mil tubos de ensaio a cada semana.

Assim, estima-se que se todas as células HeLa utilizadas nos últimos 60 anos fossem amontoadas, pesariam um total de 50 milhões de toneladas. E se fossem postas enfileiradas lado a lado, dariam um total três voltas ao redor da Terra. Um número muito superior ao número de células que Henrietta possuiu em vida e que já viveram mais tempo fora do que dentro de seu corpo.

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Células HeLa em Divisão celular – Foto: Smithsonian Magazine

E o que aconteceu com Henrietta e a Família Lacks?

As pesquisas sobre as células de Henrietta já haviam começado enquanto ela estava viva, visto que a amostra de seu tecido foi coletada em Fevereiro de 1951 enquanto sua morte ocorreu em 4 de outubro do mesmo ano. No entanto nunca foi dito à senhora Lacks e seus familiares sobre o quão importantes suas células eram. Seu marido e filhos só descobriram sobre HeLa em 1973, quando pesquisadores apareceram em sua porta procurando amostras de sangue. A família foi totalmente surpreendida ao descobrir que ainda haviam “pedaços vivos” da senhora Lacks e a indústria multibilionária que surgiu para vender suas células.

Para piorar a situação, os Lacks não têm nenhum direito sobre as HeLas, e nunca puderam sequer decidir como as células são usadas enquanto bilhões de dólares eram movimentados sem o consentimento da família. Isto tudo porque nos anos 1940 e 1950, os tumores e tecidos retirados em um procedimento médico eram considerados como “abandonados”, e por não haver uma legislação específica sobre o assunto na época, não estava clara a necessidade de autorização do seu usoem pesquisas que iam além do tratamento médico do paciente.

Com todas as vidas salvas por Henrietta, sua família ainda vivia em extrema pobreza, incapaz até mesmo de ter plano de saúde. Felizmente isso mudou após um documentário sobre a heroína desconhecida produzido pela BBC em 1998. Os Lacks foram homenageados pelo Museu Smithsonian e pela Fundação Nacional para a Pesquisa do Câncer, nos EUA. Em 2010, Rebecca Skloot escreveu “A Vida Imortal de Henrietta Lacks”, uma biografia a qual Oprah Winfrey comprou os direitos para adaptar um filme. Skloot usou os recursos obtidos para criar uma fundação de auxílio financeiro e médico à família Lacks. Inclusive, no mesmo ano uma lápide foi doada e plantada na cova anônima de Henrietta Lacks, uma mulher negra, pobre e quase sem instrução que pavimentou todo o caminho do progresso científico no século XX.


Referências

Matéria da BBC Brasil: A história da mulher com células imortais que salvam vidas há 60 anos

Matéria do New York Times: A Lasting Gift to Medicine That Wasn’t Really a Gift

Página do CityPaper (Disponível em WebArchive apenas): Wonder Woman – The Life, Death, and Life After Death of Henrietta Lacks, Unwitting Heroine of Modern Medical Science

Página do Instituto John Hopkins: FAMILY RECOGNITION, COMMUNITY AWARDS, AND AUTHOR HIGHLIGHT HENRIETTA LACKS MEMORIAL LECTURE 2010

Livro (Disponível para Download no formato digital): A Vida Imortal de Henrietta Lacks

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